Se tem uma coisa que tem me motivado a desenhar e pintar nos últimos tempos é a ferrovia. Ferrovia antiga, quero dizer, com locomoção à vapor. Os registros iconográfios (leia-se fotos e filmes) da era do vapor no Brasil são raros e escassos. Na época de ouro das ferrovias no país, o Brasil chegou a ter o terceiro maior conjunto ferroviário do mundo, atrás de EUA e Inglaterra. Teve algumas das maiores locomotivas à vapor do mundo. A primeira "decapod" fabricada pela Baldwin (a maior locomotiva já fabricada pela empresa americana até então) foi uma encomenda da Central do Brasil. Teve a primeira locomotiva especialmente desenvolvida para rodar no meio das cidades, puxando bondes. Foi um dos primeiros países do mundo a eletrificar uma linha férrea. O Brasil era um "Big Player" no cenário ferroviário do fim do século XIX início do XX. Mas em nome do "progresso", o Brasil resolveu paulatinamente sucatear sua ferrovia em prol do rodoviarismo e outras políticas estúpidas que hoje sabemos, nos trazem mais problemas do que benefícios...
As boas histórias do Brasil são rapidamente esquecidas. Ninguém as registrou adequadamente. Enfim... imaginar cenas ferroviárias que nunca foram "clicadas" ou filmadas se tornou um passatempo delicioso pra mim e uma forma de resgatar a memória ferroviária (por enquanto, de forma particular :^).
A cena que abre este post ocorria diariamente nos arredores da cidade de São Paulo, mais precisamente na região de Caieiras, numa ferrovia que teve vários nomes, mas que ficou principalmente conhecida como Estrada de Ferro Perus-Pirapora. A EFPP não era grande nem opulenta. Rodava principalmente com material usado e empoeirado e quase ninguém a conhecia, exceto, claro, as pessoas da região. Carregava calcário das pedreiras de Cajamar e levava para os fornos de Gato Preto para virar cal, cortando os "mares de morros" com é chamada tecnicamente a topografia do local. Depois levavam o cal para a fabrica de cimento em Perus. O cimento desta fábrica ajudou a contruir a Sampa que conhecemos hoje. E foi depois que alguns gringos a "descobriram" na década de 70 que alguns poucos brasileiros passaram a "reparar" na ferroviazinha.
Como sua bitola (distância entre os trilhos) era de apenas 60cm, a EFPP, nas décadas de 50/60 não conseguia mais comprar material novo. Ela precisou comprar material de outras ferrovias de bitola de 60cm (o estado de São Paulo tinha muitas outras ferrovias com essa bitola e era praticamente o único) que já estavam sendo extintas nessa época. Isso fez da EFPP um verdadeiro tesouro histórico: nela era possível encontrar locomotivas que foram da maior fazenda de café do mundo (Família do Santos=Dumont, em Ribeirão Preto), de ferrovias de Campinas e de muitas outras cidades do interior. No final das contas a antiga EFPP tinha um dos maiores acervos de locomotivas de bitola de 60cm no mundo.
Trata-se portanto de uma ferrovia de valor inestimável, tombada pelo Condephaat. Mas o governo adora tombar patrimônios históricos, fazer aquele auê na mídia e depois largar tudo ao relento. A preservação do material histórico da EFPP depende hoje do IFPPC, um instituto sem fins lucrativos, tocado por voluntários que se dedicam à preservação das linhas e do material rodante. Com muito custo eles têm conseguido belos resultados.
Tempos atrás eu estive no "Corredor", nome dado a um dos pátios de manobras da antiga Perus-Pirapora. Lá o vice-presidente do IFPPC, o Sr. Nelson, nos fez a gentileza (eu estava com um casal de amigos) de nos levar de trolei (um pequeno vagão com um motor adaptado) por um trecho da via para conhecermos o lugar, a paisagem e etc. O passeio foi simplesmente magnífico e foi devidamente filmado (quando tiver tempo coloco no YouTube) e fotografado. A linha acompanha o rio Juqueri e por vezes precisa ultrapassar córregos, pantanos e mata fechada. Me senti um verdadeiro Indiana Jones, rodando naquele vagonetezinho precário, por trechos que faltava muito pouco para desabar... Não preciso dizer que aquela visita ao pessoal do IFPPC incendiou minha imaginação.
Chegando em casa fiz o rascunho abaixo, imaginando a locomotiva No.5 (uma das que estão paradas aguardando recuperação) rodando na década de 70/80 pelo trecho que eu acabara de percorrer. Depois de mostrar para alguns amigos e atendendo aos pedidos, escaneei e colori no computador utilizando ferramentas de pintura digital.